quinta-feira, 29 de julho de 2010

Feliz 1988

         Qual o sentido que damos as cartas e aos cartões que recebemos e escrevemos? São votos vazios, palavras escritas ao esmo, perdidas ao vento e inúteis? Talvez, no anseio do dia que não finda, pretendemos partilhar nossa vida com alguém, ou contentes, vamos ler os dizeres breves de um cartão natalino.
Será mera cortesia ou apenas a tentativa de manter laços à distância? O que dizer então da era digital, onde todos se comunicam virtualmente e trocam beijos, músicas e, é claro, a palavra. O ser humano é extravagantemente comunicativo? As cartas são raras, mas existem os blogs e as comunidades virtuais.
Sim, nós somos comunicativos, nossa tradição muitas vezes é mantida oralmente, e, através da palavra falada ou cantada, nos lembramos das histórias da vovó, dos causos do avô e das cantigas da tia. E por meio das palavras vão surgindo as histórias de família e, se estiverem distantes, surgirão longas cartas.
Ao menos, era deste modo que muitos eram informados de nascimentos, óbitos e aniversários a uns 15, 20 anos atrás.  Sendo letrado, escrevia; ou não sendo, ditava, para que alguém escrevesse. Desejávamos, também, através de palavras impressas que tomávamos como nossas os cartões com sinceros votos, agradecimentos, boas festas, saudações, desejos sinceros e singelos ou hipócritas quiçá confessos.
            Foi um desses cartões simples que encontrei no fundo de uma gaveta hoje à noite. Era pequeno e estava endereçado à minha mãe, e como escrever é recordar, interpretar, viver e compartilhar com o outro; ler é conhecer, reconhecer e apropriar. Desta forma me apropriei daquelas palavras e vi nele sentimentos e uma percepção própria de alguém: era uma amiga de minha mãe desejando a nossa família um Feliz 88. Ao ler me senti presenteada e fiquei tentando recordar como foi o ano de 1988, se de fato foi alegre ou se ficou apenas a intenção.
Procurei então, no fundo desta gaveta esquecida, outras cartas e cartões que sobreviveram a tantas mudanças de endereço. Tentei decifrar caligrafias e reconhecer nas palavras alegrias e tristezas, desabafos e formalidades, entusiasmo e, em meio as minhas primeiras cartas de criança, descobri meus papéis de carta. Decorados com motivos infantis, bichos, flores, há quanto tempo não vejo um papel de carta. Ainda fabricam? O que fiz com minha pasta de papéis de carta que eu colecionava com carinho e cuidado? Enviei todos? 
Pena não terem sobrevivido, pois seriam finas fontes históricas. Não importa! Ao menos restou um papel de carta que uma prima minha escolheu em sua coleção que era infinitamente maior que a minha. Ela escolheu para enviar uma cartinha a mim. Nós morávamos à 700 km de distância e, em meio a aquela fórmula pronta que nos ensinaram a escrever cartas, existia o medo, de haver ali, algum erro de ortografia que comprometesse o entendimento e as peripécias de quem está crescendo.
Minha prima pedia desculpas por não escrever freqüentemente e me perguntava das paqueras. Ela é três anos mais velha que eu. Ora, naquela época, aos 10 anos era eu que me desculpava por não poder escrever ainda sobre paqueras. Eu ainda não as tinha. Deste modo, do cartão da minha mãe ao papel de carta com o cachorrinho meigo, eu pulei cinco anos no tempo. Não consegui distinguir em minha mente nenhum acontecimento especial de 1988, nem lembrei se respondi a carta que minha prima me enviou em 1993. Todavia, meu fim de ano tornou-se diferente, lembrei de como minha família estava espalhada, de quantas cartas recebíamos antigamente, das inúmeras vezes que fui retirar no correio os presentes de natal que minha avó enviava. Não poderia ter feito nenhum exercício mais saudável. Percebi como a memória mesmo fragmentada é tão importante. Vi novamente as pessoas que mesmo tão próximas estão tão afastadas, como eu e minha prima que moramos hoje na mesma cidade e não nos vemos de modo que não sabemos mais da vida da outra, das notas da escola, de como melhorar a caligrafia, nem das paqueras.
Descobri, enfim, qual o sentido que eu dou as cartas e cartões que recebo: pedaços minúsculos soltos na teia do tempo. Com caneta tecemos a inconstância da vida, fios finos de harmonia, alegria e tristeza. Peguei um cartão antigo e todas estas coisas foram por mim desencadeadas e um desejo singelo de amigo se fez presente comigo como se a pouco eu o tivesse recebido... 

cinco centavos

        Já era noite quando o miúdo entrou na sorveteria da praça. Ele, moreno-claro, possuía sobrancelhas escuras à lá Monteiro Lobato que se encontravam graciosamente na testa curta. A face, o cabelo raspado e a roupa de domingo davam um ar descontraído ao lusitano de seis anos. 
         Com ternura apreciei a independência do rapaz que ia servia-se de sorvete com o pote grande. Porém, ele necessitava de auxílio, o braço curto não alcançava o freezer. Foi então que apareceu a atendente gorda e grande. Para o pequeno, aquele ser gigante pôs fim a sua noite de refresco livre. 
Ela perguntou num tom impróprio para se tratar um cliente, se o garoto queria sorvete. Obvio! Sim, desejava sorvete. Respondeu imperioso. Você tem dinheiro? Perguntou a gigante. Oras, quem era ela para inquiri-lo de tal forma. Pensou o menino.
A mão morena consultou o pequeno bolso da bermuda azul.Ele não estava desprevenido. Havia o tesouro prateado de terras brasileiras. Sim tenho. Respondeu o menino com impaciência. Então, deixe-me ver o dinheiro. Primeiro o dinheiro! Arrematou a gigante. As sobrancelhas do rapaz juntaram-se ainda mais, e com a fisionomia grave tirou a moeda do bolso.
O que há?  Anda logo! Quanto você tem ai? Sem dinheiro não há sorvete. Ameaçou a mulher. O menino olhou a única moeda e a depositou na palma daquela mão ameaçadora. Cinco centavos! Exclamou a atendente. Os olhos da mulher cresceram mais para aquele menino estrangeiro, xereta, de fora da cidade, enfim que ela não conhecia. Isto não é o suficiente! Mas dito isto, o menino não se conformou, olhou para a moeda na mão da mulher com o ar de enganado. Sem sorvete! Isto não dá!
Ela confiscou os cinco centavos como parte do pagamento por uma outra remessa de sorvete que o menino não fazia muito tempo levara.  Sim, dizia a mulher aos outros fregueses, o menino havia saído dali não havia uma hora levando um sorvete de 75 centavos com o pretexto de que o pai pagaria depois. Ela não conhecia o garoto, quanto mais o pai. Nunca tinha posto os olhos naquela criança portuguesa que lhe custara 75 centavos no magro ordenado do mês. Minha gente, o patrão não estava para caridade com quem nem vivia ali! Certamente ia descontar o dinheiro do salário dela. Espertezas de criança! Ela era mais esperta! Era ver primeiro o cobre para depois ir tirando o sorvete.
O menino fechou no ar a pequena mão que esperava reaver os cinco centavos. Saiu chispado da sorveteria. Os cinco centavos são parte do pagamento! Os poucos fregueses olharam-no se afastar com pena. Não fazia bem criança sentir vontade das coisas. Pensei, mas não me atrevi a saldar a dívida do lusitano.
Porém, para surpresa de todos, quinze minutos depois volve o garoto soberbamente no estabelecimento, agora munido de uma nota de cinco reais. Cabeça erguida, sobrancelhas lustrosas segue até a atendente. Esta abaixa um pouco para receber a nota que o pai dera ao miúdo. Eis aqui! Entregou a nota à mulher. Faremos negocio! Disse em tom de gracejo a mulher. Qual sabor você quer? O menino apontou para o creme e o chocolate. Fez ainda uma observação! Sem cobertura. O menino não gostava daquela calda melada sobre o sorvete. Lambuzava a roupa e estragava o sabor. Apontou para a cereja. Só a cereja em cima.
Ele saiu de lá vitorioso equilibrando sua bandeja com uma apetitosa cereja e o troco dobrado dentro do bolso da bermuda. Do suposto pai viu-se a mão que estendeu a nota através do vidro do carro estacionado na praça, o mesmo carro que recolheu o menino na porta da sorveteria...