quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Horas tristes da tarde

A cor da tarde esconde o brilho do olhar




A luz ilumina o arroio que teus olhos insistem em conter

Na margem tu desenhas displicente a vã visagem

A memória: não te deixa adormecer

Tua morada ressequida persiste



Não há o que temer

A não ser o brilho triste da verdade

A correr, torrente em segredo

Tens saudades e medo



A chuva tarda na terra rachada, cantam as cigarras

No porão, os fragmentos, roem as traças

Acaba-se tudo, mas tu teimas em tecer



Mostra um dos tesouros de antigas paragens

Racha o seu imenso jaspe

Para que tu não perdures o anoitecer

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Côncavo e convexo


    A adolescente que vejo é apenas uma sombra ao fim do corredor. Na escola ela não usa máscara, mas atrás do sarcasmo e da chatice de sempre há um anjo, ou melhor, dois. 

    A menina que coloca o pé para que as colegas tropecem antes de entrar na sala de aula, que implica com as outras e não hesitara em atormentar e a mesma que dá aulas de catequese aos finais de semana. Nada surpreendente, porque a irmã dela faz o mesmo. É o côncavo e o convexo. O que posso esperar delas já que sei o seu segredo? Será que é segredo? Penso eu, enquanto vejo-as entrarem no salão paroquial. Ainda bem que nenhuma delas é minha professora de Crisma. Aniquilaria o pouco de convicção que me resta. Apesar de tudo é preciso ser crismada.

    Depois de umas idas a igreja, percebo que ela e a irmã participam ativamente das atividades cristãs do bairro, bem longe da escola que frequentamos. Passei a observá-las mais na escola. Vejo a linda expressão que nasce em seus rostos quando algum desavisado cai no corredor.

    Por que eu não as vi antes na função de santinhas? Deve ser por que dificilmente eu vou à missa. Será que na escola alguém sabe? Talvez já que uma função não exclui a outra.

    Há uma ética na qual não dá para ser delicada apenas aos sábados e domingos. A dúvida permanece, eu já não tenho tanta certeza de que elas são desagradáveis. Elas estão sempre sorrindo, solicitam, cantam e rezam com o ninguém. São dois rouxinóis.

    O que há, então? A irmã mais velha tem olhos constrangidos quando me vê na igreja. Ali não dá para por o pé e rir quando alguém se esborrachar. Eu as contemplo. A irmã mais moça é tão meiga ensinando os dez mandamentos as crianças. Nem de longe parece a cavalgadura de 1,80 metros que dá encontrões nas outras meninas entre os intervalos das aulas. E o vocabulário delas! Um primor. Ainda ontem, escutei a torrente de palavrões que soltaram na hora do recreio. O que pensam de mim, eu sei, e sei por que já me chamaram de nomes impublicáveis. Agora me olham tímidas como se suspeitassem o que eu estou pensando. Mas não tenho poder algum. Elas não temem que Deus as olhe com os mesmos olhos que qualquer colega de escola ao ver essa cena. Ele deve ver muito mais.

    Tenho vontade de dizer. Eu não tenho nada haver com a vida que levam. Calma, eu gosto apenas de ver a mudança de comportamento todos os sábados, não vou comentar.

    Eu não sei o nome delas. Vejo apenas suas sombras correndo bem maiores que a pretensa luz.







sábado, 4 de setembro de 2010

Quando a saudade aperta





Ao ausente


Vives em um mundo sem presente ou futuro; mudo
Já não há mágoas, desejos, aurora e crespúsculo
Nada se alterna ou enverga
Na ausência do vento não há palavras, bom dia, tão pouco perdão
Vagas no escuro
Dormes no ar
Caminhas na pequena chama onde encerra a saudade
Brilhas no coração


Na madrugada voltas sorrindo, insistente, alegre num instante-absurdo
Queres habitar em meus sonhos e ressuscitar por segundos
Reunir a família extinta, compartilhar as novidades; tudo
Nada pedes, enfim, permanece em teu riso, silêncio absorto
No teu olhar triste não cabe conforto

As horas custosas de outrora cismam em ficar
Por que ainda não repousas?
Porque eu continuo a te chamar!?
Não se aborreça comigo dá-me a última ilusão
Também é penoso continuar anos sem consolo

Não há futuro ou presente para ti é verdade
Relembro o passado somente, o amor que foi muito
Lamento a nossa convivência que durou pouco.

Ingrediente estranho



Barata é um inseto maldito, nem bomba atômica mata! Barata inseto achatado, oval que leva nome comum a todos os ortópteros da família dos blatídeos, segundo o dicionário.

Contudo, não foi isto que Dona Helena esperou encontrar quando escolheu aqueles dois discos de pizza no supermercado.

A meliante estava tostadinha e quem não prestasse atenção pensaria ser parte da massa. Certamente foi o que pensou Dona Helena e os netos que a acompanhavam no supermercado naquela tarde chuvosa.

Massa semi-pronta é muito prática. Pensou. Só não cogitou que certos insetos insistem em perturbar as cozinhas e as padarias.

As caixas empilhadas, a comida exposta, a negligência quanto a limpeza e a vistoria, enfim, formam o ambiente propício para a propagação das pragas. Infelizmente a vigilância sanitária nem sempre está atenta a tais fatos.

Dona Helena encaminhou-se para a padaria e escolheu os ingredientes do lanche da tarde dos seus netos. Dentre roscas e salgadinhos, preferiu comprar a malfadada massa.

Ao chegar em casa e desembrulhar a pizza para preparar o recheio, percebeu que a parte tostada na verdade se tratava de uma imensa barata torrada, pronta para servir.

Dona Helena quase morreu de nojo e, não acreditando no que via, pediu para os netos confirmarem. Depois da confirmação, ela muito escrupulosa juntou a massa e voltou ao supermercado.

Discreta, chamou o gerente mostrando as perninhas já separadas do corpo atrás dos dois discos.

O gerente, percebendo a gravidade, chamou a senhora num canto do supermercado para que outros clientes não tomassem ciência do que se passava. A audição da simples palavra barata poderia render uma debandada de clientes para a concorrência.

Ele observou atentamente e constatou se tratar mesmo do inseto.

- Uma fatalidade. Disse ele a Dona Helena espanando as mãos e devolvendo a pizza a cliente.

Depois mandou chamar o outro gerente para decidirem juntos qual seria a retratação a dar a Dona Helena. Afinal, o cliente sempre tem razão.

Dona Helena não exigia muito queria apenas mais higiene na padaria.

- Aquilo era um nojo. Repetia.

- Imagine isto aí e apontava para a barata, nos salgadinhos, andando nos doces e no pão que eu compro aqui todo dia!

- Não é bem assim minha senhora. Argumentava o outro gerente.

- Vou chamar o responsável pela cozinha. Disse.

A responsável pela cozinha chegou e deu um tapinha amigável nas costas de Dona Helena.

- Eu já sei do que se trata. Estas coisas acontecem. Nós dedetizamos na semana passada. Disse a chefe da cozinha.

E as baratas alucinadas pelo veneno se jogaram nos fornos. Imaginou um dos netos de Dona Helena que a acompanhava.

- Pior ainda! Exclamou Dona Helena.

- Esta é uma barata envenenada. Podia ter matado alguém. Disse a dona de casa aterrorizada.

Um dos gerentes percebeu que algumas pessoas prestavam atenção na cena e em tom conciliador tratou de encerrar o caso.

- Vamos, então, falar da retratação da senhora

O supermercado deveria se destacar em outros quesitos, menos no que se refere a baratas.

- Pretendemos ressarci-la do prejuízo. Afirmou o gerente

Dona Helena ficou pensativa por alguns minutos. Como tempo é dinheiro a responsável pela cozinha já se preparava para retornar ao seu posto, enquanto o outro gerente olhava Dona Helena sem entender.

Afinal e contas, o que esta mulher quer? Pensava.

Dona Helena entendeu aquele olhar.

- Eu quero mais higiene. E o lanche dos meus netos. Eles querem comer pizza sem esse ingrediente estranho.

Os três funcionários se entreolharam.

- Vamos lhe devolver o dinheiro. Ao que o outro gerente respondeu.

- Escolha o que a senhora quiser para o seu lanche.

Dona Helena escolheu uma pizza industrializada embalada numa caixa e ainda levou um brinde da casa. Entretanto ela ficou magoada num ponto. Não a convidaram para conhecer a cozinha do supermercado. Ao que eu pergunto, por que será?