sábado, 30 de outubro de 2010

Diabo azul

O Diabo Azul

          Um velho magricela seguiu Ana durante um tempo. Ele usava apenas um short jeans curtíssimo e calçava chinelas de tiras azuis. Fazia muito calor e o homem sussurrava palavras inaudíveis. A mulher não sentiu medo, porque conhecia por alto a história daquele homem. Por que a desgraça dele já havia chegado aos seus ouvidos? Não lembrava mais o nome do velho, mas ele numa última tentativa de aproximação parou no passeio, pôs as mãos na cintura e fez uma pergunta. Qual seria? Ana não compreendeu e sentiu-se culpada por ignorar aquele homem só, que esturricava no sol de três da tarde. Na loucura daquele homem havia sentido? Sim. Pensou Ana que se virou para examinar a figura pequena ao longe ainda parada com as mãos na cintura.
           Ana caminhava apressadamente vez ou outra olhando ao redor, mas não havia nada familiar, as pessoas, os bichos a paisagem tudo era novo. Ela caminhava pelas ruas de uma cidade estranha. Este pensamento dominou-a. A novidade já não a encantava, ao contrário sentia-se perdida como a interrogar um desconhecido com as mãos na cintura, só que numa rua escura. 
Achou a praça onde tinha marcado de encontrar-se com o marido. Logo ele ia buscá-la. Avistou no fim da rua uma banca de revista e suspirou aliviada, afinal não estava tão sozinha quanto temia. Comprou a revista de História preferida e foi ler sentada num banco onde havia uma densa sombra. Ela ergueu a cabeça para observar melhor a copa das árvores, unas floridas outras nem tanto, mergulhou no verde ao ouvir o canto dos pássaros que pareciam vir de longe, de outras praças em outros dias ensolarados. No instante seguinte pareceu que tudo rodava e Ana sentiu que ia desmaiar. Entretanto, ela permaneceu sentada admirando aqueles ipês amarelos floridos que mirava pela primeira vez. Era impressão ou o pensamento nostálgico a fizera rodar para levá-la para longe. Estava decepcionada por saber a inutilidade e o malefício daquilo. Era impossível retornar. Ana respirou fundo o aroma fresco da tarde, enquanto guardava as lembranças suscitadas pelo verde. Depois examinou as fotos da revista. Mostravam desde as primeiras civilizações italianas até o Renascimento. A Itália dos muitos sítios arqueológicos. Um país longínquo, desconhecido, com o mar mediterrâneo banhando ao sul. Ana viu o mapa e recordou a professora que não cansava de repetir que a Itália tinha o formato de uma bota prestes a chutar uma bola. Quando sorriu percebeu que um homem a observava atentamente e que seu gesto o encorajou a se aproximar.
     - Não pude deixar de notar como a leitura a absorve. Afirmou o velho bem vestido de barba comprida e óculos fundos. 
     - Eu também aprecio ler ao ar livre, sobretudo sem compromisso. Continuou.
      Ana não viu graça no homem. Parecia saído de um retrato do começo do século XX. Além do mais tinha ar antipático e com um sei que de desajustado. 
Ela limitou-se a sorrir e continuou a folhear a revista. Até que o homem a interrompeu novamente.
     - Estás convencida de que o diabo é azul?
      A mulher estranhou a pergunta e se lembrou do velho louco de short que vira no caminho.  Mais um pensou. Só que esse não é famoso o suficiente, porque ainda não vieram contar-me suas desgraças. Ela respondeu calmamente.
     -Pode ser, como também pode ter de tudo quanto é cor. Vale a imaginação! 
      O homem não gostou da resposta e replicou.
    - Mas é certo que esse povo antigo não se baseava apenas na imaginação. Eles tinham motivos para representar assim... 
     - Claro! Os Etruscos passaram a representar o diabo assim depois da ameaça Romana. Ao menos os especialistas explicam desse modo. Respondeu Ana.
     - Os especialistas acham que tem resposta para tudo. Disse o velho. 
     - Você sabe que ninguém nunca vai saber. Talvez eles desenhassem assim porque viram um. 
      Ana pensou em teimar com o velho, mas ele dizia tudo com voz terrível, os olhos arregalados debaixo dos óculos e com os antebraços para trás dando voltas em torno dela como um professor que quer impingir a lição. 
     - O senhor conhece o conteúdo desta revista? Perguntou.  
     - Sim. Eu também já estive na Itália e visitei muitas ruínas. 
      Eu mesmo já vi um desenho desses. Apontou para a gravura da revista. 
     - Um diabo azul? Perguntou Ana. 
     - Já. Respondeu.  
     - Pois se tem até gente azul por ai. Completou. 
     - Ela se sentiu intimidade e ferida. Por que o homem viera para atormentá-la? Ela que há pouco bebia as sensações da infância na verdura da praça. Logo ela tão suscetível a certos causos. Certamente não dormiria bem à noite. Foi com tal inquietação que ela respondeu:
     - Eu infelizmente ainda não pude ir à Itália matar minha vontade de conhecer um pouco da Antiguidade de perto. 
     - É tudo terra. Disse o homem com um ar de desdém, mas que já conheceu o mundo. 
       Ela se enfureceu com o ar de superioridade do homem. Ela levantou-se do banco e caminhou rumo a banca de revistas. Quis ligar para o marido. Porque ele demorava, entretanto o velho caminhava ao seu lado perguntando sem parar. 
     - Há tantos diabos para nos tirar a paz! Disse para espantar o homem. 
     - Acha-se especial? Perguntou o velho
     - Eu sei que não sou boa. Constatou Ana.  
     - Por que comprou uma revista que te aborrece? Perguntou o velho novamente.
     - Não é a revista. Eu amo ler sobre esses assuntos. 
     - Mas você não gosta de ouvir a verdade! Sentenciou o velho. 
    - Você se lembra do doido que você desprezou mais cedo? Perguntou novamente.
      Ana sem ação olhava para o homem. Como ele sabe disso! Pensou em dizer. Mas não respondeu. Ao chegar na banca o velho desapareceu.

domingo, 10 de outubro de 2010

A criança e a mãe

Presença

Priscila não sabia descrever a estranha sensação que indicava a presença de um parente. A mesma que sentia, quando uma amiga se aproximava da casa dela. Intuição? Priscila reconheceu a mãe de longe.
A mãe acabara de sair da loja e agora caminhava tranquilamente pela calçada.
- De longe parece tão pequena. Priscila pensou.
Dona Ana levava duas sacolas e a bolsa pendia imprudentemente para trás. Priscila quis correr para alcançá-la, para dar-lhe um forte abraço como nos velhos tempos. Porque não? Não. Ela estava atrasada para buscar Raquel na escola. Priscila inventou tantas desculpas como se alguém desaprovasse tal atitude. Ela observou a mãe até desaparecer virando a esquina.  
- Que má vontade você tem para fazer as coisas Raquel! Priscila repreendia a filha que puxava sua grande mochila de rodas cor de rosa. Um castelo e uma princesa...
Nada haver com nossa realidade. Pensava Priscila que não conseguiu fazer sua filha escapar das mesmas armadilhas do consumismo que ela caía quando criança.
 Então, chegou o dia em que seus professores falaram sobre cultura brasileira,Idade Média, Europa, mercado, publicidade e tantas outras coisas que Priscila percebeu, o quão estavam distantes aquelas histórias com castelos medievais.
Priscila tentou inutilmente explicar a Raquel os motivos para não comprarem a mochila cor de rosa. Não era por avareza, embora a mochila fosse cara e o material ruim. Onde podemos encontrar um castelo medieval? Nenhum argumento resolveu o impasse. Raquel era como uma bonequinha programada para querer justo aquilo que a mãe não queria.
As duas caminhavam para casa, Raquel arrastando seu sonho encantado e Priscila com remorso por não ter ido atrás da mãe. Uma mecanica conversa surgiu:
- Como foi sua aula hoje? Priscila perguntou.
A menina arregalou os olhos como se ouvisse uma voz fantasmagórica perguntando.
- Boa. Respondeu
- A professora viu o dever de matemática que eu ajudei você a fazer? Perguntou Priscila com ar interessado.
- Viu. Tava tudo errado. Você me ensinou errado! Respondeu Raquel.
O rosto de Priscila ficou vermelho. Ah é bom saber. Da próxima vez pede para o seu pai ajudar.
A menina parou no passeio e abriu a mochila. Tirou de dentro um caderno de desenhos com folhas de cetim entre as de sulfite.
- Olha o que eu fiz na aula hoje. Esticou o braço e entregou o caderno para a mãe
- O que são esses pontos marrons que você colocou aqui embaixo
- Estragou a flor. Afirmou Priscila entregando o caderno para a filha. Raquel pegou bruscamente seu caderno de volta.
- São formiguinhas, mãe! Respondeu
As duas deram as mãos e atravessaram a rua. A sombra de mulher estava ao lado da pequena.
- Mãe! Chamou Raquel.
Priscila fitou aqueles olhinhos castanhos cheios de doçura. A vida dela era diferente. Ela também era mãe.

Isolda

Boneca Isolda

Toca o berrante velho, Isolda!
E feliz, e leve, e frouxa
Brinca no ar a cabeleira solta
Boneca de pano, boneca de louça.

Frágil bibelô que cora à toa
O que será de ti bela?
Finos traços, amores bordados
Guarda bem teus segredos de moça

Gira no ar, traspassa e voa...
Roda o vestido de seda velha
Ampara a esperança doura

Toca o passo breve
Sonha a fortuna vindoura
Donzela; tua sorte é outra!